domingo, 25 de outubro de 2009

SAUDAÇÕES A TODOS aqui está o conto que eu fiz para entrar em uma compilação de contos de funcionários da livraria da travessa. Espero que gostem.



A HERANÇA


Aníbal era um mendigo. E ele andava pelo centro da cidade. Quando era ainda jovem, por causa de promessas de emprego veio de pau-de-arara da Bahia para o interior do Rio. Lá trabalhou em sistema de servidão na plantação de cana até os trinta. Fugiu com dois amigos para a cidade da Guanabara – na época capital do país- com promessas de enriquecimento fácil. Aníbal e seus amigos não sabendo o que era ser rico, primeiro arrumaram um emprego em uma gigantesca fábrica de tecidos. Ali Aníbal ficou mais vinte anos. Durante esse tempo, as únicas coisas que pôde fazer nos intervalos foi frequentar os cabarés baratos da lapa e os quiosques de praça. A cachaça, as francesas e as polonesas, foram comparsas da dormência de Aníbal durante todo esse tempo. Um dia a fábrica faliu e todos foram mandados embora. Quando saiu o mundo já era outro. A Guanabara não era mais a capital e ainda havia mudado de nome. Estava maior, mais suja. Aníbal, o único sobrevivente dos três amigos que haviam vindo do interior, após deixar para trás os portões da fábrica percebeu que estava sozinho no mundo outra vez. Ou será que nunca havia deixado de ser? Pelo menos, depois que a fábrica faliu, ele encontrou a única coisa definitiva que teria na sua vida dali para frente: a rua seria a sua casa. Mas Aníbal era forte e sobreviveu muito tempo ainda comendo papelão recheado com lixo e restos de restaurante. Pediu muita moedinha na porta do banco e cheirou crack na avenida Chile debaixo do viaduto, até que – já muito velhinho – se estabeleceu em um pequeno barraquinho localizado em uma rua de trânsito intenso. Rapidamente as pessoas que costumavam passar ali se acostumaram com ele; o comércio em volta e os moradores o conheciam e o respeitavam e o cumprimentavam: - Bom dia, seu Aníbal. Tudo bem com o senhor?
Ele respondia com um ‘sim’ meio rabugento, porém amigável. Ali viveu muitos anos também. Mas um dia algo de estranho aconteceu. Aníbal, que aprendera a ler e escrever bem pequenino com sua mãe, sempre que podia lia um livro que achava por ai. Ele gostava muito desses momentos, pois era quando tinha algo de interessante a fazer. E ele só parava quando chegava ao fim. Mas desta vez seu Aníbal teve uma surpresa, primeiro triste por perceber que o livro que encontrara estava em branco, mas logo depois estava sorrindo. Seu Aníbal começou a escrever. Mas não escreveu sobre qualquer coisa, escrevia sobre sua vida, seus sofrimentos, suas feridas. As lágrimas desciam de seus olhos enquanto ele rasgava a brancura antiga das folhas como alguém que tatua a pele lisa de uma mulher. Escreveu a história da sua migração e sua palpérrima estabilidade na cidade maravilhosa. Ficou dias e dias nisso. Num certo dia pela manhã ouviram seu Aníbal dando gargalhadas no meio da rua. Ninguém entendeu nada. Entenderam menos ainda quando perceberam que seu Aníbal havia sumido. Uns disseram que ele saiu andando e não voltou mais, outros que seu Aníbal morreu e que o lixeiro havia levados seu corpo por engano pensando que era um trapo velho e fedido. Mas também disseram que haviam visto o velho andando pelo castelo uns dias depois. Eu mesmo quando ando pelo centro, até hoje ainda vejo seu Aníbal andando por aí. No lugar em que ficava, no barraco que havia construído numa esquina de alta periculosidade, haviam encontrado um livro escrito a mão. Um dos garçons do boteco, que era amigo de seu Aníbal, levou para seu patrão, que mostrou a sua esposa que o deixou por dois anos em cima do armário do quarto. Depois o mostrou para sua amiga que o levou para seu marido que era comerciante de antiguidades. O comerciante o colocou em sua loja e lá o livro ficou por mais tantos anos. Depois de ter resistido a duas enchentes, três roubos e um incêndio e ter ficado por mais muitos anos na estante particular do comerciante, ele foi dado por sua esposa a um amigo que era dono de uma editora e que resolveu publicá-lo por achar a história interessante. Era a história de seu Aníbal. Por isso era difícil não molhar os olhos ao ler um livro escrito também as lágrimas. Na primeira página, duas pequenas frases, quase insigficantes, mas muito importantes, diziam tanto que seus sentidos se perdiam nos confins de cada mente que lhe dava atenção: Eu queria um livro. Então o fiz.

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